O que é a Teoria das Categorias? - Um breve esboço histórico (este texto faz parte da minha dissertação de mestrado cujo título é
'Nominalismo de Categorias - Funtorialização dos Particulares
Paradigmáticos').
A teoria das categorias
teve seu germe na parceria entre os matemáticos Samuel Eilenberg e Saunders Mac Lane. Os dois
trabalhavam juntos num problema em topologia algébrica formulado anteriormente
por Borsuk e Eilenberg. Durante a colaboração, os métodos utilizados
evidenciaram que muitos homomorfismos de grupo eram ‘naturais’. Tal fato
despertou nos dois colaboradores a necessidade de uma definição mais exata da
expressão ‘isomorfismo natural’, como eles mesmos afirmam: “Nós estamos agora
em uma posição para dar um preciso significado ao fato de que os isomorfismos
estabelecidos no capítulo V são todos ‘naturais’ (Eilenberg e Mac Lane [1942b],
p. 815, tradução minha). No decorrer do trabalho em conjunto e dos resultados que conheciam, o
fenômeno denominado por eles de ‘naturalidade’ mostrou-se comum em diferentes
contextos, o que os motivou a escrever uma pequena nota na qual introduzem, em
geral, a noção de um funtor, e em particular, a noção de um isomorfismo
natural. Por meio dessas noções, os dois queriam dar um significado preciso ao
que é partilhado pelos isomorfismos naturais. Tal nota era uma base para uma
teoria geral apropriada, entretanto, os isomorfismos naturais eram restritos à
teoria dos grupos. No final da nota, Eilenberg e Mac Lane afirmam que a
presença de isomorfismos naturais é requerida, também em outras áreas da
matemática, pela estrutura axiomática geral (veja Eilenberg e Mac Lane
[1942a], p. 537).
Dando continuidade às
pesquisas, Eilenberg e Mac Lane
escrevem em 1945 um artigo intitulado General Theory of Natural Equivalences. É um consenso a afirmação de que o
nascimento da teoria das categorias se dá, oficialmente, nesse artigo. O
objetivo principal era pormenorizar o que foi esboçado na nota, ou seja,
apresentar um framework axiomático geral a fim de definir a noção de isomorfismo
natural, que por sua vez seria utilizada para ‘capturar’ aquilo que é
compartilhado pelas estruturas de áreas distintas da matemática. A noção de
categoria surge justamente da necessidade de uma definição precisa da noção de
isomorfismo natural: para levar a cabo essa empreitada, funtores tiveram que
ser definidos numa completa generalidade no artigo de 1945, e para atingir essa
completa generalidade foi necessária a definição de categorias. Aqui é como o
próprio Mac Lane explica: "nós tivemos que descobrir a noção de uma
transformação natural. Que por sua vez obrigou-nos a olhar para functores, que
por sua vez nos fez olhar para categorias" (Mac Lane [1996c], p. 136, tradução minha). E
ele diz também que “o desenvolvimento conceitual da topologia algébrica inevitavelmente
descobriu as três noções básicas: categoria, funtor e transformação natural”
(Mac Lane [1996c], p 130, tradução minha).
Algumas dificuldades
foram imediatamente percebidas por Eilenberg e Mac Lane. É importante salientar, antes de prosseguirmos,
que a noção de funtor para os dois era como sendo a de função, e, como tal,
necessitava de domínios e codomínios bem definidos; assim, a noção de categoria
teve que ser introduzida justamente para satisfazer essa restrição na definição
de funtor. Dito isso, fica fácil ver o que Eilenberg e Mac Lane logo
perceberam: construções tais como a categoria de todos os grupos, ou a categoria de
todos os espaços topológicos, não são legitimadas se o ponto de vista for a
partir da teoria de conjuntos padrão. Vejamos, nas próprias palavras dos dois,
como eles, inicialmente, objetivaram driblar essa dificuldade:
... Todo o conceito de uma categoria é, essencialmente,
um auxiliar, os nossos conceitos básicos são essencialmente aqueles de um
functor e de uma transformação natural ... A ideia de uma categoria é exigida
apenas pelo preceito de que cada função deve ter uma classe definida como
domínio e uma classe definida como codomínio, as categorias são fornecidas como
os domínios e codomínios de functores. Assim, pode-se abandonar o conceito de
categoria completamente e adotar um ponto de vista ainda mais intuitiva, em que
um functor tal como "Hom” não está definido sobre a categoria de ‘todos’
os grupos, mas para cada par especial de grupos que podem ser dados. O ponto de
vista seria suficiente para as aplicações, uma vez que nenhum dos nossos
empreendimentos envolvem construções elaboradas sobre as próprias categorias.
(Eilenberg e Mac Lane [1945], p. 247, tradução minha)
Fica claro, a partir da
citação exposta acima, que em 1945 a noção de categoria para Eilenberg e Mac Lane não era nada mais do que
um dispositivo heurístico, algo completamente descartável para o bom
funcionamento das aplicações que os dois tinham em mente naquele momento. De
fato, de 1945 até 1957-1958 essa era, grosso modo, a posição subjacente ao
status de categorias. Mesmo assim, Eilenberg e Mac Lane não estavam completamente satisfeitos com essa
solução intuitiva, tendo em vista que logo passam a buscar alternativas. Por
exemplo, uma alternativa seria a adoção de NBG como um framework e a utilização
da sua distinção entre conjuntos e classes, sendo possível, dessa forma,
afirmar que a categoria de todos os grupos é uma classe. A adoção dessa
alternativa suscitaria a preocupação no que diz respeito à legitimidade das operações realizadas
nessas classes. No entanto, na prática, em decorrência da simplicidade dessas
operações nos primeiros, pelo menos, dez anos, tal legitimidade não era uma
grande preocupação no uso da alternativa NBG. Diversos livros na década de
sessenta adotaram a alternativa segunda a qual categorias grandes devem ser
tomadas como classes, por exemplo, Eilenberg e Steenrod [1952], Freyd [1964],
Mitchell [1965], Ehresmann [1965], Bucur e Deleanu [1968], Pareigis [1970]. É
importante salientar, também, que no livro de Cartan e Eilenberg [1956] sobre
álgebra homológica, que teve bastante influência no que diz respeito ao papel
de certos funtores, a questão sobre o que são categorias sequer é levantada,
todo o livro é desenvolvido sem a definição de categorias. Em particular, os
livros de Eilenberg e Steenrod, e de Cartan e Eilenberg foram cruciais para o
desenvolvimento posterior da teoria das categorias.
Até aqui fica óbvio que a
teoria das categorias não era vista ainda como um campo de investigação
autônomo, mas, apenas como uma linguagem acessível, uma linguagem de
orientação. As coisas começaram a mudar em meados dos anos cinquenta, e não
pelas mãos dos dois fundadores, mas pelos trabalhos de Alexander Grothendieck e
Daniel Kan, que foram publicados, respectivamente, em 1957 e 1958. Em seu, hoje
clássico, artigo Sur
quelques points d'algèbra homologique, Grothendieck definiu as
categorias abelianas, além de introduzir uma hierarquia de axiomas, os quais
categorias abelianas podem ou não satisfazer, que permite determinar o que se
pode construir e/ou provar nesses contextos. Nesse artigo, ele generaliza
vários resultados, como, por exemplo, os trabalhos de Cartan e Eilenberg. Mas o
que nos importa aqui é que é justamente no contexto das categorias abelianas,
tal como definido por Grothendieck, que a teoria das categorias adquiri a
generalidade que conhecemos hoje. Ou seja, nesse contexto, aquilo sobre o que o
sistema estudado trata não tem a menor importância. A ideia é mover a
investigação para um nível comum de descrição, no caso, o das categorias
abelianas e suas propriedades, e por meio de funtores estabelecer que as
relações de determinados objetos categóricos a,b,c,... entre si são as mesmas que as relações de
determinados objetos categóricos o,p,q... entre si. Isso significa que a caracterização
de um tipo de estrutura se dá por meio dos padrões dos funtores existentes
entre objetos, sem, contudo, qualquer necessidade de especificação dos objetos
e setas. Como McLarty explica:
conceitualmente isso não é como os axiomas para grupos
abelianos. Esta é uma descrição axiomática da categoria toda de grupos
abelianos e outras categorias similares. Nós não prestamos atenção ao que os
objetos e morfismos são, somente a quais padrões de setas existem entre os
objetos. (McLarty [1990], p. 356, tradução minha).
As implicações disso são
óbvias. Em particular, isso influenciou diretamente na alternativa NBG que,
como vimos, até então era padrão entre
os que utilizavam a teoria das categorias, tendo em vista que se nós não precisamos
nos preocupar com a questão sobre a natureza das setas e objetos para
caracterizar uma dada categoria, nós não precisamos da teoria de conjuntos NBG
para responder essa questão. De fato, como afirma McLarty sobre as categorias
abelianas: "os axiomas básicos permitem executar as construções básicas da
álgebra homologica e provar os teoremas básicos, sem o uso da teoria de
conjuntos em absoluto" (McLarty [1990], p . 356, tradução minha).
Em 1958, Kan publicou um
artigo intitulado Functors involving
c.s.s. complexes, no qual unifica vários resultados do seu trabalho em
homotopia. Para levar a cabo tal unificação, Kan utilizou a noção de funtor
adjunto, introduzida por ele em 1956. Entretanto, obviamente, a unificação dos
seus resultados publicados em Functors
involving c.s.s. complexes só faria sentido com uma explicação da
ferramenta utilizada, ou seja, com uma explicação da noção de funtor adjunto.
Para cumprir esse propósito, Kan publica um artigo separado, um pouco antes da
publicação de Functors involving c.s.s. complexes,
intitulado simplesmente Adjoint functors.
O que nos importa aqui é que a noção de um funtor adjunto acabou se mostrando
para Kan, enquanto escrevia Adjoint
functors, uma noção absolutamente geral. Em particular, Kan observou que a
noção de um funtor adjunto estava conectada com outras noções categóricas
fundamentais, tais como as noções de limite e colimite. A noção de um funtor
adjunto tornou-se a noção fundamental na teoria das categorias, como afirma Mac
Lane: “o conceito sobre o qual uma teoria completa e autônoma poderia ser
construída e desenvolvida” (Mac Lane [1971a], p. 103, tradução minha).
Bibliografia
Eilenberg, S. e S. Mac Lane [1942a]: ‘Natural isomorphisms in group theory’, Proceedings of the National Academy of Sciences U. S. A. 28, 537–543;
_________[1942b]:‘Group extensions and homology’, Annals of Mathematics 43, 757–831;
__________[1945]: ‘General theory of natural equivalences’, Transactions of the American Mathematical Society 58, 231–294.
Mac Lane, S. [1971a]: Categories for the Working Mathematician. New York: Springer-Verlag.
__________[1996c]: ‘The development and prospects for category theory’, Applied Categorical Structures 4, 129–139;
McLarty, C [1990]: ‘The uses and abuses of the history of topos theory’, British Journal for the Philosophy of Science 41, 351–375.
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